Minha Lisboa
“Lisboa é minha. Sempre foi. Antes mesmo de eu chegar lá pela primeira vez, já era minha. E não adianta tentar culpar a literatura ou a música por isso. Seria pouco. Na verdade, não inventaram ainda um termo específico ou um vocábulo no dicionário para definir o que há entre Lisboa e mim. Apenas, nos interessa existir. Lisboa é minha, não na ideia de possessão. Eu não a roubei, não a comprei e nem a achei por aí. Ela é minha, pelo simples fato de eu dizer que é. É a minha cidade: não conquistada mas que me conquistou. Conquistou a cada rua, a cada praça, fonte, jardim, igreja, a cada caminho seu que descobri e que vou descobrindo.
Lisboa é chamada de Cidade Branca por sua luminosidade. Sua pele é clara e tem, também, algumas sardas. Já a minha cor é de um branco tropical, meio desbotado e que se bronzeia facilmente. Seus olhos são azuis, mudam de tonalidade nos dias de sol e fazem um interessante contraste com meus olhos escuros que são sempre escuros. Lisboa é muito falante, é uma cidade alegre e espontânea. Mas, é em seu silêncio que ela mais me diz. E é no meu silêncio que, melhor, ela compreende minhas aflições.
Lisboa e eu temos, entre nós, algumas formas de tratamento. Ela gosta de me chamar de Tupi enquanto eu tento colocar seu nome no aumentativo e a chamo de Grande Lisboa. Amo nossas conversas nessa sonoridade curiosa de uma mesma língua falada em sotaques distintos e expressões distintas que nos fazem duvidar, por vezes, que estamos a falar o mesmo idioma. O idioma de Fernando Pessoa que, sentado à porta do café A Brasileira, jamais se sentiu desconfortável com nossa presença a sua mesa – mesmo diante de nossos discursos inflamados, sorrisos e fotografias. Creio que, igualmente, Carlos Drummond de Andrade não se importaria em dividir conosco seu banco no calçadão de Copacabana e, também, mais todos os nossos discursos inflamados, sorrisos e fotografias.
Do alto do Miradouro da Senhora do Monte, coloco-me atenta ao sul. Depois, fixa ao poente, contemplo Lisboa por inteira. Prometo que, um dia, hei de sobrevoá-la, vencendo meu medo de altura – ou do que for – desde que ela me assegure que, um dia desses, vamos saltar de asa delta do alto da Pedra da Gávea como há tempos planejamos fazer. E, nessa hora, veremos qual das duas é a mais corajosa no momento de correr na rampa e pular.
Lisboa não me pede para ser lisboeta e eu não lhe peço para ser carioca. Ela tem o seu Cristo Rei com os braços abertos para o Rio Tejo enquanto eu tenho o meu Cristo Redentor voltado para a Bahia de Guanabara e, independente destas diferenças, andamos com fé, ouvindo e cantando inúmeras canções – desde um fado a uma canção popular brasileira.
Há quem conheça Lisboa pelos pratos com bacalhau e natas e um bom vinho tinto. Quando queremos jantar, trocamos tudo isso por almôndegas, massa gratinada e vinho branco. Preferimos o queijo de cabra aos pastéis de Belém; o Teatro Rápido a um clássico; o táxi ao elétrico; a fantasia à realidade; o Encontro à Saudade.
À Rua das Portas de Santo Antão, no fim da tarde, Lisboa me apresenta – sem ciúmes, claro! – a Casa do Alentejo: toda palaciana e majestosa. De um salão ao outro, de um andar ao outro, vou escutando histórias que aconteceram naquele lugar: exposições, tertúlias, apresentações musicais, lançamentos de livros. Nós duas rodopiamos por aqueles espaços como se estivéssemos a dançar. Nossos passos são barulhentos nos pisos de madeira das escadas. Posso quase sentir os aromas do campo, o gosto das ervas de cheiro e a lentidão das coisas. O Alentejo, narrado com intimidade por Lisboa, parece ainda mais interessante. Antes de sairmos, ela me oferece uma moeda junto à fonte do jardim interior da Casa. Apesar de eu não ser uma pessoa supersticiosa, faço com prazer o que ela me pede. Fecho os olhos, penso em um desejo e jogo a moeda na fonte. Tudo que é bom, necessariamente, não deveria durar tão pouco.
Quando a noite cai escura, podemos, então, seguir para algum restaurante com uma bela esplanada e me apetece ficar ali, sentada no terraço. Se o vento fica frio, um funcionário me traz uma manta e Lisboa me empresta seu ombro onde inclino a cabeça. Se o vento sopra mais forte e joga meus cabelos para o outro lado do rosto, acredito ser Lisboa a me acarinhar a fronte no consumir das horas que correm. Por mais que eu não queira, o tempo passa rápido. Tentamos enganá-lo, dizendo que não é tão tarde e paramos em uma praça para tomar um cafezinho, sentadas nos degraus de uma escadaria de um monumento histórico. Depois, perambulamos pelo Bairro Alto por um barzinho aqui e outro ali. Ouvimos jazz e ouvimos nossas vozes silenciando. É preciso dizer adeus. Abraço Lisboa como se pudesse retê-la comigo e, nisso, sou capaz de ouvir seu coração de cidade batendo acelerado. Ela, porém, segue e caminha entre o velho e o novo que se misturam em sua arquitetura milenar. Vejo-a partindo enquanto estou de pé, sozinha, à porta de um hostel ou mesmo de dentro de um autocarro rumo a uma estrada, ou pela janela de um avião que decola e que me leva para o lugar de onde vim, ao qual pertenço.
Quando estou deste lado de cá do oceano, recordo-me das vezes que Lisboa e eu passeamos por suas calçadas com pedrinhas escorregadias, iluminadas por candelabros antigos, cheios de poesia. Não nos falta uma alegria pura, boa, descontraída, parecida com a que existe entre amigas muito pequenas e ingênuas. Entre Lisboa e mim, não faltam recordações. Não nos falta nada. Lisboa é minha. Até hoje, ela não tentou provar o contrário. Ela e eu bem sabemos que temos, pela frente, um Atlântico cheio de rotas. E, se isso for sonhar alto demais, nos contentaremos em ficar ao pé do Tejo, sentadas, de pernas cruzadas, jogando conversa fora sem grandes preocupações.”
Sandra Fliess
FLIESS, Sandra. Conto: Minha Lisboa. Mundos Suspensos e Seus Esconderijos. São Paulo: Editora Lexia, 2013.
Você também tem uma história especial com Portugal e gostaria de vê-la publicada aqui no Cultuga? Escreva para nós!
Viaje a Portugal com tudo organizado
8 Comentários
Ler esse conto me faz cruzar o oceano e retornar a Lisboa. Saudade dos dias lindos de primavera quando estive lá. Volto no tempo, volto a Portugal. ❤
Lindo conto e você escreve muito bem. Parabéns. Adorei!
Tão maravilhoso poder ler e reler este teu conto, Sandra! Rico em detalhes, sempre me transporto àquela linda cidade. É como se fosse possível revisitar Lisboa e matar as saudades de lá. Um brinde (com vinho do Porto) ao seu talento com as palavras! Beijo
Sandra, palavras ditadas pelo coração. Como Lisboa pede e provoca. Lindo. Feliz por ti e comovido aqui. Bj,
Que lindas palavras! Cada detalhe e cada descrição simplesmente me transportou, quase como se eu estivesse em Lisboa outra vez. Parabéns pelo conto, belíssimo! Obrigada por me proporcionar essa saudade boa..
Obrigada, Camila! Fiquei muito feliz pelo Cultuga ter postado este meu conto aqui no blog deles.
Obrigada pela tua leitura e por partilhar tuas impressões. Lisboa é mesmo uma cidade que sempre vai deixar saudades. Beijinhos.
Olá Sandra,estou sempre por aqui pelo Cultuga e pra minha surpresa vejo a sua foto e percebi que era um rosto conhecido,quero dizer que me identifiquei demais com suas narrativas pois também amo Lisboa. Parabéns pelo belo trabalho. Bjs. Orlando Carlos
Obrigada, Orlando, pela leitura do conto e por tuas palavras. Também estou sempre por aqui pelo Cultuga! Como não estar, não é mesmo? :) Sinto-me mais próxima de Portugal assim. Que bom que você se identificou com o “Minha Lisboa”. Como não amar esta cidade? :)
Abraço.
Sandra.